No mais recente ensaio da quadra da Grande Rio, o samba ganhou um novo significado. A musa Karen Lopes fez do palco uma passarela de reverência ao trabalho invisível, à ancestralidade e à força feminina ao homenagear as lavadeiras do Pará — mulheres que, ao longo da história, resistem com dignidade e constroem laços de memória nas margens dos rios da Amazônia.
Vestida com uma fantasia feita de chita vibrante e adornada com pregadores — elementos que remetem diretamente à lida diária das lavadeiras —, Karen encantou o público não apenas com beleza, mas com narrativa. O figurino, assinado por Eliane Martins, equilibrava com maestria o popular e o sofisticado, elevando os símbolos do cotidiano ao patamar da arte. Cada bordado, cada aplicação, ressignificava o gesto repetido de estender roupas ao sol como ato ancestral de sustento e resistência.
A escolha de homenagear essas mulheres anônimas não veio à toa. “Nosso olhar aqui precisa alcançar não só o presente. É preciso reconhecer quem construiu esse presente”, afirmou Karen, com emoção. O pregador, antes invisível na sua simplicidade, tornou-se protagonista — um pequeno totem de lembrança e dignidade.
A ação da musa ecoa para além da quadra. Representa uma virada de chave no entendimento do que o Carnaval pode (e deve) representar. Quando a Grande Rio dá espaço para uma narrativa nortista, rompe com centralidades culturais e amplia o alcance simbólico da festa. As lavadeiras do Pará, antes confinadas à margem da história, tomam o centro do palco, revestidas de brilho e orgulho.
Não se trata de folclore ou exotismo. A homenagem carrega densidade política, cultural e afetiva. Karen não apenas celebrou uma estética, mas encarnou um legado. A fantasia se transformou em manifesto visual que aproxima o passado do presente, a periferia do centro, o invisível do visível.
Ao trazer para o samba a figura da lavadeira — trabalhadora, mãe, ancestral, artista —, a musa lavou mais do que roupas simbólicas. Lavou olhares, estigmas e apagamentos. Fez da passarela um altar e da memória um espetáculo. O gesto extrapolou o ensaio e reverberou como grito de pertencimento.
A Grande Rio, com essa escolha, reafirma que o samba é espaço de história viva, onde cada batuque pode carregar séculos de luta. E Karen Lopes, com sua fantasia-afeto, provou que o Carnaval pode, sim, ser palco de transformação, onde o pregador do varal vira joia de resistência e as lavadeiras se tornam rainhas do Brasil profundo.